quarta-feira, outubro 12, 2005
...crise insuspeita.

Se você me encontrar em qualquer esquina, não pergunte.

Faça seu aceno normal, aquele tão corriqueiro que nem se quer lhe oferece resistência muscular ou só provoque aquela dor nos ombros e lhe prova que ainda está vivo. Vire a cabeça lentamente para frente com este sorriso falso que carrega e perceba o exato momento em que não estarei olhando para você, aproveite, e se depare sendo corroído com a velha ansiedade de relaxar cada expressão facial modelada, mas para sua decepção...

Eu estarei encarando...

Não se trata de gosto pessoal ou desejo masoquista de esperar até que a última gota de sangue caia na fresta dos paralelepí­pedos, somente continuarei com um olhar fixo (de peixe morto diz a criança que te acompanha), insistente e completamente fora dos padrões daqueles que lhe dão ordens todos os dias de sua miserável "existência normal". Não é hora de sentir medo ainda, e nem de alargar os passos (aliás, as crianças gostam de se divertir, pare de puxá-la!), assim não vou poder me mexer e ir seguindo seu cheiro fétido de conformidade, os cães de caça precisam ao menos de um rastro, isto que você chama de instinto é a mais pura racionalidade intrinseca, talvez infantil (a criança se diverte comigo, é sua filha?). E quando me pediu que fosse embora e pra longe, numa fala atrapalhada e embolada...

Já havia agachado e começado a falar com ela...

Não se parece com você, e isto é o que alivia o meu sincero ego de não ter cópias suas espalhadas em cada canto desta cidade cinza. Voar, ela diz, e você nem se quer consegue imaginar o que é andar sem o peso de malas, dinheiro, celular e uma boa roupa importada. O tempo parece estar a meu favor, minha linguagem é pesada e lenta a ponto de enjoar seu organismo frágil, e em tão poucos minutos (horas e dias...) de conversa com sua filha. Vê esse olhar discrente dela... parece que você não é mais o seu herói. Ei! Não sou culpado de suas atitudes hipocritas e nem precisei de tecnicas de manipulação em massa para provocar a fúria desvairada desta pequena, a menina parece ter nojo de você a cada momento a mais que convive. Moral e famí­lia são conceitos seus, ou será que nem isso foi capaz de pensar por si só, aliás, não espero esse lapso existencial de um ser que nem pode dizer não ou sim por inteiro, e implora para ficar engaiolado todos os dias para não se contaminar com gente como eu, mas por mais que se esforce...

O ví­rus está corroendo sua lógica, casa, sentido...

Contratou um psicologo, você me diz. Talvez anestesiando ela numa cama de hospital branca e cercada de máquinas de pouco barulho e muita graciosidade, além de bailarinas enfeitadas de branco com facas cirurgicas, você possa segurá-la com correntes e dizer feliz aniversário numa data qualquer que você nunca se lembra. Mas ela continuará olhando e você vai continuar a bater sem nenhuma restrição ou prescrição médica, até que ela se canse e emita uma risada patética, nada mais merecido e refletido. E quando você cruzar novamente a rua, em desespero acuado, como um bicho inominado, para qualquer lado que olhar...

Eu estarei em silêncio...

E isto te incomoda. Eu sei. Você virá conversar comigo, e se perguntará por que veio sentar-se ao meu lado. Discretamente, levantarei e com um ritmo doce falarei sobre sua morte, seus receios e seu medo, pois não sou sua oposição e sim a fundamentação de seu inferno, realidade e indecência. Continue a me negar e apenas afirmará minha existência e sua incapacidade de se fundir a mim, acabarei como você, mas você nunca poderá acabar com meu olhar, minha voz e nosso lamento.

Não olhe mais no espelho, não quero que me confunda com você.

Colocado por Valdemiro as 10:07 AM