O dente do macaco
![]() Dizem que todos os sentimentos da alma ficam gravados no corpo. E partes deles destoam provocando uma sensação estranha aos outros. Com a morte não são libertados. Ficam gravados a dor em pedaços dos corpos. O dente do macaco me chamou no meio da rua. Estava passando em meio a multidão. Me chamou apenas. E com um poderoso incômodo, me forçou a acompanhá-lo. "Quanto custa?" "Existem pessoas mano que não entendem o que a arte, que isso é um trabalho sabe, você que entende, sabe que isso é um trabalho sério né, tá ligado, pra você mano faço 5 reais" "O que é isso?" "É um dente de..." "Só tenho 4,85, pode ser?" "Pode sim" "Isso é dente de que?" "Como havia te falado é dente de um macaco. De vez em quando trago uns quando vou para Amazônia" "..." O dente do macaco me prendeu. Mas o incômodo me impediu de usá-lo até a noite. Outra vez. O dente do macaco me traz uma sensação de solidão. Solidão do macaco que não se sabe morto. Talvez. Solidão e ódio. Quero usá-lo agora. Para estar acompanhado. Com a solidão alheia. E o ódio que posso atenuar. Do macaco sem dente. Estou enlouquecendo aos poucos. Deixem registrado. Admito. ![]()
Canto da Cidade.
![]() Há uma novidade nos cantos de boca do povo. A porta está fechada, dizem eles baixinho ao pé do ouvido. Alguns sorriem de satisfação com a surpresa repentina. Outros sofrem com o receio de um perdão a muito tempo devido. Casa pequena, desgraçada. Se não a queimam, ao menos deveriam interditá-la. Para que seus detroços não me cubram mais. Com seu vazio. Mas a ocasião faz a festa na cidade. Abram os portos, dizem eles, sem muito pensar nos custos. Sobre os céus e as nuvens, somente as marcas no mesmo corpo. Que volta a sua terra, sem ao menos estar morto. Alma penada, desgarrada de tudo e de todos. Se não o procuraram antes, quando perdeu o brilho, por que estariam agora contigo, depois que a noite tomou conta do ultimo olhar perdido... Do seu rosto. Desfigurado. Vai alma perdida, grita o que não quer. Cala o que sente. Arrebenta o que ama. Mata o reflexo no espelho. O que importa agora é que fechaste a porta. Para dentro. Da casa pequena e úmida. Em sua pequena lembrança. Casa pequena, desgraçada. Se não a queimam, ao menos deveriam interditá-la. Para que seus detroços não me cubram mais. Com seu vazio. ![]()
Sofia.
![]() Minha filha se chamará Sofia. Sofia de todos os meus sonhos. Sofia, mesmo antes de nascer, tem meu amor incondicional. Um amor tão grande que transcende a minha própria alma. Aliás, será amada por muitos dessa forma, mesmo sem saber. Sem saber o porquê. De tanto amor ou querer. Pois, minha filha, terá duas mães. Uma está por vir. A outra a espera antes mesmo que ela imagine. Não tenho certeza da primeira, tão fugaz e passageira, que às vezes duvido se virá ou ficará para vê-la crescer. A segunda amará como eu a amo, e será o retrato sorridente em que minha filha irá ter seu espelho. Uma mulher de personalidade forte, olhos vivos, lábios entreabertos e força sem comparação neste lado da terra virgem. Sentimento a flor da pele... Temperada entrega completa àquilo que sinceramente a toca... Minha filha terá os contornos de quem amo... Por isso eu a amarei cada vez mais... Até que a minha vida seja esvaziada pelo tempo... E, no entanto, esteja repleta das lembranças que ainda trazem meu sorriso. ![]()
Por ocasião da catástrofe humana...
![]() Existem duas faces no fato. O fato do meu e o fato do seu. Os fatos são expostos na faca. Quem enfia a faca profundamente sempre mergulha no fato. Humano ou não, o fato estará lá. No fundo. A dor da faca na pele é natural para quem corta na faca o fato, do meu e do seu. Fato e acaso. Faca e afiada. Tenho a impressão que entrarei onde os fatos insinuam para a faca... As impurezas que a faca e os fatos, do meu e do seu, tentam esconder. Mas exalam espalhados por toda a esquina, a faca e os fatos. Fatos expostos, Faca obscena. Nos ladrilhos mais apagados dos fatos ou talvez na lâmina cega da faca. Algo que a faca e o fato, do meu e do seu, teimam em não compreender. Cortarás o dedo algum dia... ![]() |
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